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segunda-feira, 14 de abril de 2025

Bergman e o Jesus da Goiabeira

O Ovo da Serpente, de Ingmar Bergman, é um filme denso e dolorido. Ali está, inteiro, o processo de esgarçamento social capitaneado por gente que se imagina salvadora da pátria e seus apoiadores nutridos pelo ressentimento. Mostra como se testava os limites da democracia alemã, em 1923: pela via do ódio e da corrosão das instituições, dos valores mais altos da existência e da civilização. Há risco de naufrágio, mas as massas, cada fez mais fanatizadas e manipuladas, se creem empoderadas. E ai de quem advirta sobre o rumo perigoso que trilham. O fanático encontra justificativa para tudo; sua atuação violenta silencia as vozes dissonantes. O título do filme de Bergman inspirou-se em Shakespeare, esse conhecedor da alma humana. É uma frase da tragédia Julio Cesar: "Pense nele como um ovo de serpente que, chocado, se tornaria mau, como os de sua espécie. E mate-o na casca". Algumas idéias - não as pessoas - devem ser cortadas no nascedouro. Elas chocam e dão origem a serpentes cujo veneno vai apodrecer a carne de quem as fez prosperar. O filme O Ovo da Serpente (1977) de Ingmar Bergman nunca deixa de ser atual. Naturalmente é uma obra prima cercada de gente laureada como Dino de Laurentis na produção, David Carradine (aquele do seriado Kung Fu) no papel de Alan Rosenberg, um trapezista judeu desempregado e a belíssima e talentosa Liv Ullman como Manuella, uma cantora de cabaré, cunhada de Rosenberg. O Ovo da Serpente e série televisiva Berlin Alexanderplatz (1980) de Werner Fassbinder formam o que há de melhor na cinematografia mundial sobre a surpreendente República de Weimar, berço que embalou o nazismo de Hitler e suas monstruosidades. O Ovo da Serpente reproduz com a tradicional agucidade de Bergman os complexos panoramas sociais, ideológicos, religiosos, políticos e culturais do período. A pesquisa de Bergman é primorosa e o roteiro mais espetacular ainda. O cineasta reproduz com incrível fidelidade os passos de uma sociedade saída de uma guerra perdida, que antecipou a república declarada na cidade de Weimar, onde Goethe morreu. A nova república nasceu cheia de esperanças, mesmo sendo a representação política de um país humilhado e destroçado economicamente. O propósito da república liberal era reconduzie a Alemnha para um período de reconstrução e prosperidade. O cenário que surgiu com a república foi desesperador com inflação gigante, industrialização pífia, criminalidade elevada, anti-semitismo, anti-comunismo, desemprego em massa e ahumilhação do Tratado de Versalhes. Foi o terreno fértil necessário para o nascimento do poderoso nacional-socialismo alemão que trouxe ao mundo o Terceiro Reich de Hitler. O período plúmbeo produziu obras de raro valor como A Montanha Mágica (1924) de Thomas Mann, Nosferatu (1922) de FW Murnau e Bram Stoker, Metropolis de Fritz Lang em 1927 e o Anjo Azul de Josef von Sternberg em 1930. A torrente expressionista era a resposta que a arte oferecia em contraponto ao medo e a insegurança do crescente movimento racista e xenofóbico, que foi respaldado por um corolário jurídico conservador que assistia a ascensão de um militarismo extremista que se apresentava como a única alternativa para livrar a a Alemanha dos comunistas de 1917, bem ali ao lado na Rússia. Não posso emitir um spoiler, pois vale à pena se surpreender com o filme. Os figurinos de Charlote Fleming se unem de maneira magistral à fotografia de Sven Nykvist que é fenomenal ao transmitir com fidelidade a aura daqueles tempos sombrios e assustadores. O Brasil vive tempos assustadores e sombrios. O Ovo da Serpente nunca se mostrou tão atual e verdadeiro aqui ao sul do Equador. Naquele distante 1923 Bergman denunciava as tentativas golpistas do Exército, a repressão a liberdade individual, o culto ao grande líder, ao ditador centralizador e a prática da segregação, do patriotismo enviesado, do nacionalismo inconteste, enfim, um ovo da serpente. Na Berlim de 1923 a população também buscava alimentos no lixo. Uma das cenas do filme mostra um mutirão de pessoas que se alimenta em torno do corpo de um cavalo morto. A arte imita a vida ou a vida imita a arte?

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